A forma como o cérebro humano reage ao medo — mecanismo essencial para a sobrevivência — tem sido alvo de pesquisas há décadas. No entanto, estudos na área enfrentam limites importantes, especialmente o número reduzido de participantes, o que restringe a precisão dos resultados. Para superar esse entrave, o consórcio internacional Enigma reuniu dados de ressonâncias magnéticas de 2.199 voluntários de nove países, incluindo 1.888 indivíduos saudáveis e 311 com transtornos de ansiedade ou depressivos.
A análise, publicada na Nature Communications, é considerada a maior já realizada sobre os correlatos neurais das respostas de medo. O levantamento confirma que o condicionamento do medo depende de múltiplas regiões cerebrais — e que pessoas com transtornos emocionais apresentam padrões de ativação diferentes dos indivíduos saudáveis.
Colaboração global para ampliar evidências
Participante do consórcio, a psiquiatra Juliana Belo Diniz explica que pesquisas isoladas dificilmente conseguem amostras grandes o suficiente para conclusões robustas. “É difícil, em um único centro, reunir tantas pessoas para um estudo desse tipo. Por isso, consórcios são fundamentais”, afirma.
Juliana integrou o Programa Transtorno Obsessivo-Compulsivo (Protoc), do Instituto de Psiquiatria da USP, de onde vieram dados incluídos na revisão.
Como o medo é estudado
A resposta de medo é um tipo de condicionamento clássico aversivo, associado ao chamado condicionamento pavloviano. Nesse modelo, um estímulo neutro passa a provocar uma reação após ter sido repetidamente associado a um estímulo aversivo.
Nos experimentos do Protoc, por exemplo, imagens eram apresentadas junto a um leve choque elétrico. Depois, já sem o choque, os pesquisadores avaliavam por neuroimagem como o cérebro reagia ao reaparecimento das mesmas imagens.
Divergências entre estudos
Os métodos variam entre laboratórios — alguns utilizam choques, outros sons, luzes ou figuras —, e o Enigma comparou pesquisas com paradigmas distintos. O grupo concluiu que a principal fonte de variação nos resultados está nos diagnósticos dos participantes, e não em fatores como idade ou sexo.
A diferença apareceu de forma marcante quando comparados estudos de países como EUA e Canadá, que incluíam mais pacientes com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Nessas pesquisas, a memória de medo permanecia forte mesmo quando o estímulo já não representava risco, o que tem sido relacionado ao córtex pré-frontal ventromedial. Esse padrão, porém, não se repetiu em trabalhos do Brasil e Europa, focados em ansiedade generalizada e transtorno obsessivo-compulsivo.
“É surpreendente, já que esses transtornos frequentemente aparecem juntos, mas mostram respostas diferentes ao condicionamento”, avalia Juliana Diniz.
O que o cérebro revela
O estudo indica que a resposta de medo envolve regiões da chamada rede central autonômico-interoceptiva, responsável pelo processamento de sinais internos do corpo, e do sistema de saliência, que detecta estímulos que exigem atenção.
Embora a amígdala e o hipocampo continuem sendo estruturas importantes, o levantamento revela um circuito mais amplo, que inclui:
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ínsula anterior
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estriado ventral
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áreas motoras pré-suplementares/suplementares
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córtex cingulado anterior dorsal
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córtex pré-frontal dorsolateral
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tálamo
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gânglios da base
Segundo Juliana, esse mapeamento detalhado só foi possível porque o método do Enigma analisa o cérebro inteiro, dividindo-o em pequenas unidades para verificar a ativação específica de cada parte.
*Com a informação Jornal da USP



