Arquivo Público guarda 21 milhões de documentos no centro de Porto Alegre

Arquivo Público guarda 21 milhões de documentos no centro de Porto Alegre

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Por Fernanda Canofre / Sul21

A fachada na rua Riachuelo, no coração do Centro Histórico de Porto Alegre, é modesta para as cifras por trás dela. Antes de exibir a placa “Arquivo Público do Rio Grande do Sul”, ela já hospedou o Colégio Estadual Júlio de Castilhos e até a Junta Comercial. Passada a porta de vidro, no prédio histórico construído há 112 anos, porém, estão 21 milhões de documentos sobre a vida de anônimos, autoridades, instituições e personalidades gaúchas remontando mais de dois séculos. Alguns são sobreviventes do tempo, como é o caso do documento mais antigo da casa: uma carta de liberdade de uma mulher escravizada, datada de 1763, assinada pelo “seu senhor”. Outros, são pilhas de papéis que foram se acumulando ali até 1985.




O Arquivo foi construído para ser arquivo. O acervo é mantido em um prédio com uma parede de 1,5 m de espessura. O piso dos três andares, repletos de estantes de concreto, é vazado, feito de ferro reciclado da via férrea. O princípio seria garantir a circulação de ar, para ajudar na preservação dos papéis. A mesma ideia do teto abobadado. A iluminação consiste em lâmpadas setorizadas, para evitar incidência direta de luz sobre os documentos. Os exaustores no alto seguem funcionando sem parar desde 1906.

Recibos de pagamentos de policiais, certidões de casamento e nascimento, prontuários do Hospital Psiquiátrico São Pedro desde a sua fundação. Durante anos, tudo o que acontecia na vida gaúcha ia parar no Apers. Com 5 mil metros quadrados de área, o espaço começou a ser reservado para prioridades. Entre as entradas mais recentes no acervo, por exemplo, está o material da Comissão Estadual da Verdade.




“Hoje existe uma instrução normativa que diz que os documentos que vão ser recolhidos tem que ser avaliados, classificados e indexados no nosso Sistema de Administração de Arquivos Públicos. Não é qualquer coisa que pode entrar aqui, com algumas exceções. Por exemplo, a extinção das fundações. Nenhuma das fundações tinha gestão documental, então, o Apers está acompanhando com o secretário como será encaminhado”, conta Aerta Grazzioli, arquivista e diretora do Arquivo.

Os milhões de documentos guardados no local hoje vieram de 103 fundos de origem. Tabelionatos pelo estado, registros civis, documentos produzidos dentro dos três poderes. São pilhas de documentos que guardam o RS de várias épocas.Os arquivos das fundações que serão definitivamente extintas – e não incorporadas por alguma outra secretaria estadual – já tem o Apers como destino final confirmado. Só da Fundação para o Desenvolvimento de Recursos Humanos (Fdrh), por exemplo, Aerta estima que cheguem 12 mil caixas de documentos. A Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas (Corag) também está na lista.




Além de estudantes de História e pesquisadores de diversas áreas, os maiores frequentadores do acervo são genealogistas, em busca de levantar árvores genealógicas, para dar entrada em pedidos de cidadania. No inverno, segundo Aerta, pessoas em situação de rua, que já perderam seus documentos, também recorrem muito ao balcão do Apers para conseguir uma identificação que os ajude a ter vaga em algum abrigo.

Cartas de liberdade e documentos da escravidão

Um dos projetos, por exemplo, foca em contar e ajudar a acessar a história da escravidão no Rio Grande do Sul. Páginas e páginas de transcrição de 30 mil cartas de liberdade concedidas à pessoas que foram escravizadas, mostram o quanto custava para que um senhor concedesse à alguém a “propriedade” sobre a própria vida.

Um dos documentos registra a concessão de liberdade de um senhor ao seu escravo de 19 anos. A condição era de que o jovem fosse servir no lugar dele na Guerra do Paraguai e ficasse no Exército por mais cinco anos. Outra carta, fala da mulher que juntou uma parte do dinheiro para comprar sua liberdade, mas trazia a condição de ela seguir trabalhando para seus senhores para quitar a dívida.




Os documentos, assim como a tese de pesquisa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que estudou a escravidão no sul do Brasil, ajudam a desvelar um Rio Grande do Sul onde pessoas escravizadas eram colocadas para fazer trabalhos especializados. Eram peões, sapateiros, mucamas, trabalhadores em todos os níveis sociais, servindo ao mesmo sistema.

“Os catálogos ajudam os pesquisadores a entender que a escravidão era geral na sociedade sul-riograndense. [Entender] que ela tinha escravos não só nas charqueadas, como se imaginava, mas em diferentes profissões, em núcleos urbanos, nas casas não tão ricas. Às vezes, juntavam recursos para ter um escravo, porque aquilo era sinal de status”, explica a historiadora Clarissa Sommer.

Além das cartas de liberdade, o Arquivo possui ainda 15 mil contratos de compra e venda de pessoas escravizadas e pilhas de inventários, onde elas eram incluídas como bens.

Histórias das mulheres

Os processos também ajudam a ver a evolução dos papéis de gênero, como a sociedade via e julgava as mulheres, histórias de crimes eram cometidos por elas e quem foram algumas das gaúchas que se tornaram personalidades conhecidas. Um dos documentos trabalhados em visitas de escolas, por exemplo, é a certidão de nascimento de Elis Regina.




“Às vezes o acervo em si não tem essa perspectiva de análise, mas depende muito da pergunta que o pesquisador faz. Há pouco tempo, lançamos um catálogo que trata das mulheres e questões de gênero a partir das relações familiares. Os verbetes descrevem divórcios, pedidos de pensão, etc”, conta Clarissa.

Houve um tempo em que mulheres não poderiam ser citadas como autoras ou partes de um processo. No lugar de seus nomes, aparecia apenas o grau de parentesco com algum dos homens de suas vidas. O Arquivo, porém, guarda exceções. Na metade do século XIX, quando o pintor Joaquim de Campos Leão, que se auto-denominava Qorpo Santo, precisou ser interditado, por causa de sua condição mental, foi sua mulher Inácia quem entrou com o processo.

Em seu livro “Os sete pecados da capital”, a historiadora Sandra Pesavento reuniu pesquisa sobre sete mulheres processadas por crimes. Cinco dos processos estão no Apers. Entre eles, os processos contra Joana Eiras, a mulher que era tida como líder de um bando de criminosos na região de Porto Alegre e é citada em cartas de Júlio de Castilhos, como motivo de preocupação.

Outra história do livro, pouco conhecida, é o caso da menina Clementina, que aos 12 anos foi estuprada pelo vigário da Igreja Nossa Senhora das Dores. O caso aconteceu em 1896. O Código Penal de 1890, com maioridade penal fixada nos 14 anos, determinava que crianças acima dos nove anos deveriam passar por “critérios biopsicológicos” para decidir se poderiam ou não ser responsabilizadas.




O caso foi parar nas páginas do jornal Correio do Povo e virou um escândalo numa Porto Alegre com pouco mais de 60 mil habitantes. Numa série de documentos, o Arquivo Público guarda peças que ajudam a contar a história. Como as transações de dinheiro do irmão de Clementina, Joaquim, poucos dias depois do caso vir a público, que acabou sendo acusado de ser o primeiro homem a “deflorar” a menina.

“Clementina teve seu corpo esquadrinhado pela violência, sexual e médica que ao pesquisarem suas entranhas lhe atribuíram o estigma da mulher/menina corrompida. Padre Bartholomeu foi absolvido como convinha à manutenção da moral vigente”, escreve em um artigo a agente do Arquivo, Maristela Heck.

A vida política

O Arquivo também possui uma série de processos sobre manifestações de movimentos sociais e de revoltas que aconteceram no estado. Entre eles, os vários inquéritos contra os seguidores de Jacobina, na chamada Revolta dos Mucker, em 1868, no interior de Novo Hamburgo e contra o movimento dos Monges Barbudos, em Soledade, em pleno Estado Novo.




No ano passado, em comemoração ao centenário da greve de 1917, a equipe do Apers preparou ainda um levantamento sobre todos os processos contra os trabalhadores. Iniciada pelos trabalhadores da Força e Luz, a maioria dos textos cita a influência dos ideais anarquistas dentro dos sindicatos, de forma crítica. Dois anos depois, na greve de 1919, liderada pelos calceteiros – operários responsáveis por construir calçadas – a mesma visão se repetia.

“Na inicial do processo, eles chegam a dizer que a maioria das pessoas que tinham parado eram os ‘estrangeiros’ e que os ‘nacionais’ seguiam trabalhando. Uma forma de demarcar a influência dessas ideologias que vinham com os imigrantes”, relata Clarissa.

Os pedidos de indenização de presos políticos e pessoas que tiveram suas vidas afetadas pela ditadura militar de 1964, também estão guardados ali. São mais de 1.700 pedidos de indenização ao Estado brasileiro pela tortura praticada por seus próprios agentes.




Em um deles, reunido em um catálogo sobre a repressão, traz o laudo médico de um homem, preso no início dos anos 1970 por integrar a organização clandestina “Fração Bolchevique Trotskista”. Anos depois, ele conseguiu a indenização de R$ 30 mil, o valor máximo pago.

“Descreve aqui que ele foi levado preso, foi despido, colocado um capuz sobre a cabeça e ele foi interrogado com ‘bofetadas’, ‘empurrões’, ‘quedas’, ‘choques elétricos’ (…) Ele diz que sentiu como ‘se tudo estivesse perdido, como o fim de todas as coisas’. E que era a morte”, relata Maristela.



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